terça-feira, 1 de março de 2011

OS KAINGÁNG E A CONSTRUÇÃO DO TEMPO ATUAL[1]


Kimiye Tommasino
Universidade Estadual de Londrina-PR
Departamento de Ciências Sociais


Introdução

Os Kaingáng, povo de língua Jê, constituem um dos maiores grupos indígenas Jê do país. São cerca de 20 mil distribuídos nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No Paraná, somando todos os grupos étnicos - Kaingáng, Guarani e Xetá - são mais de oito mil e desse total cerca de seis mil são Kaingáng.
A minha pesquisa refere-se aos Kaingáng que vivem na bacia do rio Tibagi, no norte paranaense. São aproximados dois mil indivíduos divididos em cinco Terras Indígenas (TIs): Apucarana, Barão de Antonina, São Jerônimo, Natingui e Queimadas.
Neste artigo[2] proponho discutir a classificação do tempo que os Kaingáng atuais elaboraram para explicarem o processo histórico recente, isto é, de contato com a sociedade nacional e as conseqüentes mudanças socioculturais. 

Os Kaingáng da bacia do Tibagi

As terras do Segundo e Terceiro Planaltos paranaenses constituíam territórios kaingáng quando as frentes de expansão da sociedade nacional avançaram para o interior do estado, a  partir da segunda metade do século XVIII. Primeiro foram os campos de Coran-bang-rê , depois os de Creie-bang-rê, no sudoeste do estado a serem conquistados. Essas frentes de ocupação atingiram a região norte da bacia do Tibagi a partir da metade do século XIX.
Apesar de todas as interferências externas - extermínio, depopulação, epidemias, fuga para outras regiões - os Kaingáng dos município de São Jerônimo da Serra (TI Barão de Antonina e TI São Jerônimo), Londrina (TI  Apucarana) e Ortigueira (TI Natingui e TI Ortigueira) lograram resistência. Consideram-se formando uma só “tribo” pois são parentes e aliados preferenciais.  A atual distribuição geográfica das TIs reflete a extensão outrora contínua de seu território original.
A  pesquisa teve como objetivo reconstituir a história de um povo que, na experiência de contato com a sociedade nacional, foi pressionado a reorganizar-se em novas bases materiais e simbólicas. Pretendi compreender como uma sociedade, antes livre, depois de conquistado, conseguiu reestruturar-se e criar estratégias para a produção e reafirmação contínuas de sua especificidade étnico-cultural.
Procurei revelar alguns eventos históricos que produziram a clivagem étnica (Sahlins,1990), isto é, vários sistemas culturais em interação que promoveram diferentes articulações entre os sistemas nacional e indígenas. Os Kaingáng, como os outros povos autóctones, mantinham relações interétnicas com  outros povos, antes e depois do contato. Tais eventos históricos, inauguraram  uma nova estrutura interétnica  característica da situação colonial (Balandier,1955), constituída por relações de desigualdade e subordinação/dominação  entre  as sociedades indígenas e a nacional. Mas a interpretação dessas novas relações pelos índios obedeceu à lógica nativa, evidentemente ampliada e modificada historicamente a partir das novas e sucessivas experiências.
A  pesquisa demonstrou que, em relação aos Kaingáng do Tibagi,  nesse século e meio de contato permanente, a sociedade nacional impôs modelos econômicos, sociais e culturais, mas disso não resultou a dissolução e homogeneização das culturas subordinadas. Apesar das mudanças a que foram obrigados a implementar no seu modo de vida, os Kaingáng continuaram a produzir a sua cultura, gestada e redimensionada no interior do novo contexto. Mesmo adotando padrões ocidentais, estes foram reinterpretados segundo seus objetivos e necessidades, seguindo os princípios exclusivamente kaingáng.

Os relatos dos mais velhos e a classificação de tempo

Quando os Kaingáng se referem ao passado e ao modo como viviam seus pais e avós, denominam tal tempo como vãsy[3] (há muito tempo) ou gufã (antigo, ancestral). Em oposição ao tempo passado, denominam o tempo atual como uri. Essa dualidade temporal situa o vãsy no tempo em que seus avós eram vivos e viviam da caça-pesca-coleta-agricultura e eram povos da floresta. No outro extremo, situa-se o uri, o tempo dos atuais Kaingáng. Unindo os dois tempos, há um longo processo de adaptação, de ruptura, de reconstrução, de resistência, período que, na cronologia ocidental já dura 150 anos.
O que caracteriza o vãsy é um modo de vida específico - o de seus avós - num ambiente físico dominado por florestas de araucária. Esse  modo de vida, construído e vivido pelos seus avós aparece marcado por dois elementos de referência: de um lado o ciclo da natureza e, de outro, o ciclo da vida social. Às regularidades da natureza, combinava-se o ciclo das atividades sociais em geral. A interpenetração dos dois ciclos, portanto, sua inseparabilidade, expressava o modo próprio dos Kaingáng construírem e se colocarem  no espaço e tempo específicos desse povo.


Como os Kaingáng viviam no vãsy

O tempo e espaço kaingáng no vãsy era radicalmente diferente do atual. Situa-se num tempo em que seus antepassados eram jữgjữ, isto é “índios bravos”. A vida social tinha como centro de elaboração o kiki koi, o ritual dos mortos, e congregava os parentes de aldeias distantes. A sociedade kaingáng estruturava-se em metades exogâmicas, cada metade em seções,  descendência  patrilinear e residência uxorilocal. 
Vários depoimentos que obtive em campo falam do kiki koi  com riqueza de detalhes, evidenciando que o ritual percorria vários momentos ao longo de vários meses. Apesar de sabermos, pela etnografia de Veiga (1994), que o ritual era dividido em três fogos, os depoimentos enfatizaram o momento do terceiro fogo, quando os parentes de aldeias distantes eram convidados: encontro ritual na margem do rio, mais tarde o ritual no cemitério e, por fim, as danças no barracão.  A memória kaingáng atinge o tempo em que eles faziam um único e grande túmulo “da altura de uma casa” e, sobre o túmulo, um índio vestido com uma longa túnica de penas multicoloridas, fazia evoluções espetaculares. As crianças e jovens eram enfeitados com penas coladas ao corpo com mel.  Essas referências foram fornecidas por pessoas que foram criados pelos avós e por eles socializados. Este fato remete a Halbwachs para quem as crianças, através de seus avós, recuam para um passado mais remoto e recebem o legado das tradições de toda espécie (Halbwachs, 1990:65).
Veiga, ao estudar o ritual dos mortos dos Kaingáng de Xapecó-SC[4], diz ser este, ao mesmo tempo uma festa sagrada e profana.

A festa do Kiki  parece ser uma oportunidade dos espíritos dos mortos  poderem voltar à aldeia dos vivos. Seria um momento onde os vivos e os mortos estão festejando no mesmo espaço. No entanto, para aqueles para os quais se faz o Kiki, é a última volta como pessoa relacionada à comunidade, porque no Kiki, os mortos devolvem seus nomes à comunidade liberando-a do tabu que a impedia de pronunciá-lo e possibilitando que ele venha a ser empregado na nominação das crianças.
(...)
Esse ritual é marcado pela reciprocidade entre as metades, os rezadores das seções da metade Kamé devem rezar pelos mortos das seções da metade Kairu e vice-versa.
Os nomes pessoais, retomados no Kikikoi, são patrimônio das seções (Veiga,1994:162).


Veiga encontrou em Xapecó duas metades exogâmicas com quatro seções, cada qual com sua respectiva pintura facial. Entre os Kaingáng do Tibagi, obtive referências de apenas  três seções. Também não costumam referir-se às metades  Kamé e Kairu,  tal como levantaram, além de Veiga, Schaden (1959), Baldus (1979) e outros. Os Kaingáng que pesquisei referem-se aos grupos de pintura que existiam: rá joj (comprido, de risco), re kutu (círculo cheio ou pontos) e  re nor (redondo vazio, argolinha). Um Kaingáng da TI Apucarana informou ainda que havia uma outra pintura que combinava um círculo cheio e outro vazio, lado a lado e, como as demais, eram pintados nas bochechas e na testa. Essa pintura denominava-se re doro. 
Sintetizando os dados obtidos em campo, pude constatar a existência de duas metades exogâmicas: ror (circular, redondo) e têie (comprido, riscado). A metade ror possuía duas seções: re kutu e re doro (também chamado re nor).  A seção re doro pode apresentar duas variações: três argolinhas ou uma argolinha ao lado de outro cheio. A metade têie apresenta apenas uma seção re têie (também denominado re joj).
Das categorias cerimoniais citados por Nimuendajú (1993) - paí, vodoro e péñe - e por Veiga (1994) - votor e péin -, só encontramos referência ao péin como tendo função cerimonial. O votor, cuja pintura é ror foi referido como um grupo de pintura, mas não enquanto uma categoria cerimonial conforme Veiga pesquisou na TI Xapecó. De qualquer forma, essa informação reforça a tese defendida por Veiga de serem, os Votor e Aniky, grupos historicamente incorporados. Quero ressaltar, contudo, que a minha pesquisa não se propunha a ser um levantamento etnológico e meu conhecimento era e ainda é, nesse sentido, muito restrito. Uma pesquisa específica sobre essa questão poderá resultar em novos dados. Com isso quero dizer que, em relação ao sistema de metades e seções dos Kaingáng da bacia do Tibagi, os resultados de minha pesquisa devem ser tomados como provisórios e incompletos.
A pintura do péin era distinta da dos demais e constava de um círculo grande, um na testa e outra em cada bochecha. Não obtive informações sobre a pintura do péin do outro grupo, mas os dados apontam para o fato de que cada metade tinha uma mulher e um homem péin.
Uma informante disse que péin é aquele que faz o enterro, pode pegar no morto mas, se não se pinta, a “pessoa morre logo”. Havia homens e mulheres nessa categoria mas era sempre a mulher péin que pintava os homens e vice-versa. Por outro lado, sendo grupos de reciprocidade, os péin de uma metade é que prestavam os serviços para os da outra metade. Segundo alguns informantes, na TI Apucarana há dois indivíduos péin e um outro foi para Ortigueira. Isso pode indicar que, apesar de não fazerem mais o kiki koi, os Kaingáng ainda preservem alguns rituais, certamente simplificados. Esta hipótese parece encontrar sustentação a partir de algumas informações obtidas em campo. No funeral de um Kaingáng daquela TI, foi-me relatado que os enterros atuais seguem o padrão ocidental mas que, altas horas da noite, os índios mais velhos costumam se pintar durante o velório e que depois do enterro, os velhos iriam no cemitério “para rezar do jeito deles”.  Como uma das estratégias dos Kaingáng, na situação de contato, foi o ocultamento e silenciamento a respeito de seus costumes “selvagens”, é possível que ainda preservem parte desse sistema.
O ritual de luto tradicional (kukrữ ko), impunha a separação da viúva para um rancho construído na mata. O péin levava a pessoa para o local de isolamento, no caminho seus rastros eram apagados e a alimentação, também ministrado pelo péin, seguia um tabu rigoroso. O rosto da pessoa enviuvada tinha de ser coberta com um pano para que ela não pudesse olhar os outros, pois o seu olhar poderia levá-los à morte. O isolamento durava uma ou duas semanas e a reintegração da mesma se fazia ritualmente, quando o péin levava a viúva para a beira do rio, dava-lhe um banho ritual com barro e ervas e lhe cortava o cabelo. Só então podia retornar ao convívio social.
Tanto as descrições do kiki koi quanto do kukrữ ko expressam os compartimentos, as margens e limiares pelos quais deve passar o indivíduo durante o ciclo de vida e deste para o outro mundo.  Segundo Veiga, os Kaingáng acreditam que o ser humano é composto pelo (corpo perecível) e pelo kumbâ (“espírito” ou “alma”). Quando alguém morre, o espírito vai para o numbê, (“o mundo das almas”). Uma vez no numbê, as pessoas vivem uma vida semelhante à que viviam anteriormente na terra (Veiga,1994:157/158).
Sobre os ritos de luto, Veiga explica que:

Aos espíritos dos mortos (vein kupríg) se atribuem todas as características dos espíritos dos vivos (kumbâ), incluindo a capacidade de sentir saudades das pessoas que conviviam com ele.
O vein kuprí-korég, alma do morto recente, é perigoso para as pessoas que conviveram com eles: ele sente saudades e retorna aos lugares que estava acostumado, para levar consigo seus entes queridos. A esposa, os filhos e netos são os mais susceptíveis ao perigo que ele representa (idem:159).


Compreende-se pois porque os péin tinham de usar verdadeiros disfarces da viúva para que  o morto não viesse buscá-la: isolamento, pinturas faciais, apagamento das pegadas, corte do cabelo.  Sobre o ritual de luto, Van Gennep explica:

O luto, no qual outrora eu não tinha visto senão um conjunto de tabus e práticas negativas que  marcavam o isolamento em relação à sociedade geral daqueles que a morte, considerada como qualidade real, material, tinha posto em estado sagrado, impuro, parece-me agora como um fenômeno mais complexo. Na realidade, é um estado de margem para os sobreviventes, no qual entram mediante ritos de separação e do qual saem por ritos de reintegração na sociedade geral (ritos de suspensáo do luto). Em alguns casos este período de margem dos vivos é a contrapartida do período de margem do morto. A terminação do primeiro coincide com a terminação do  segundo, isto é, com a agregação do morto ao mundo dos mortos (...)
Durante o luto, os vivos e o morto constituem uma sociedade especial, situada entre o mundo dos vivos, de um lado, e o mundo dos mortos, de outro, da qual os vivos saem mais ou menos rapidamente conforme fossem mais estreitamente aparentados ao morto. (...) É como deve ser, para o viúvo ou viúva que pertencem durante maior tempo a este mundo especial, do qual só saem mediante ritos apropriados, e num momento tal que mesmo a relação física... não possa mais ser suspeitada. Os ritos de suspensão de todas as proibições e de todas as regras... do luto devem  portanto ser considerados como ritos de reintegração na vida social, restrita ou geral, de mesma natureza que os ritos de reintegração do noviço (Van Gennep,1987:127).


Leach se preocupou em interpretar o sentido do corte do cabelo em várias sociedades. Afirma que a etnografia registra uma “relação persistente entre o cabelo como um símbolo e por isso apropriado que seja proeminente em ritos que denotam uma mudança de status socio-sexual”. Nota o autor que, quando os indivíduos se movem publicamente de uma posição a outra, são proeminentes os atos rituais em que uma parte do corpo é cortada em ritos de passagem e “ritos de separação” (Leach,1983:165-166).
   O parto também implicava, para a parturiente, um conjunto de procedimentos rituais. Submetia -se a um conjunto de tabus e a um período de margem. No momento do parto, era isolada por um péin numa cabana na mata e só retornava depois do nascimento do filho. Mãe e filho eram cercados de cuidados especiais tendo por objetivo a proteção de ambos. A mãe observava uma dieta alimentar e só podia consumir alimentos vegetais. O parto era de cócoras e podia contar com ajuda de uma mulher péin.
O uso de plantas medicinais para muitas finalidades foi revelado por muitos Kaingáng: para as doenças em geral, para espantar os espíritos, para a anticoncepção, abortivos, para fortalecer as crianças e torná-las valentes, para  proteger das picadas de cobra e do ataque de outros animais. Todos os “tratamentos” eram  ministrados pelos kuiã e eram associados com rezas, queima de folhas, enfim, um conjunto de práticas cerimoniais.
A memória coletiva dos Kaingáng retém apenas os pilares da vida material e simbólica do passado. O que caracteriza o tempo vãsy são o kiki koi, o luto como rito de separação e de margem, rito de separação dos vivos em relação aos mortos, comensalidade como rito de agregação. Referem-se sempre às formas culturais estruturadas, formas integradoras dos indivíduos e grupos e, por isso, falam de práticas plenas de significação.
O tempo passado aparece marcado pelas formas de subsistência baseada na caça (anta, cateto, quati, paca, macaco, porco-do-mato, aves), pesca nos pari (armadilha de pedras  construída  nas corredeiras combinada com uma esteira de taquara na extremidade), coleta ( de mel, sementes, raízes, frutas silvestres, corós de vários tipos, vegetais e outros). O vãsy é representado como um tempo de muita abundância alimentar, de liberdade e de uma vida social tecida por regras sociais, tabus, festas. Era o tempo e espaço dos Kaingáng jữgjữ, quando faziam guerras com outros índios e com os fóg, isto é, os brancos. O espaço dos Kaingáng “bravos” era constituído por florestas de araucária entremeada por campos onde faziam suas aldeias fixas (emã).
O modo de vida kaingáng era definido pela caça, pesca e coleta porque a sobrevivência dos índios provinha da exploração dos recursos do meio ambiente. A agricultura era feita em pequena escala e implicava a utilização de tecnologia simples: usavam  o machado de pedra (még) e estacas de madeira para roçar o mato. Depois da queima do mato, jogavam as sementes e só retornavam para a colheita. Produziam milho, abóbora, amendoim e feijão.
Quando afirmamos que o modo de vida kaingáng era definido pelas atividades de caça, pesca e coleta é porque a forma de organização do espaço tinha sido conformado por essas atividades:  a construção de ranchos provisórios (wãre) o qual tinha como referência o emã (aldeia fixa).  A mobilidade no interior de seu território tinha as seguintes características: as atividades florestais ou de pesca se organizavam em torno dos grupos de parentesco; o emã nunca ficava vazio, havendo sempre os que saíam e outros que voltavam; algumas atividades (como melar) demandavam menos gente e menor tempo fora do emã; outras, como pescar nos pari, demandavam mais gente e mais tempo no wãre, mas o critério continuava vinculado ao grupo de parentesco. Estas informações apontam para um tipo de territorialidade própria dos Kaingáng[5]. No caso dos pari - uma construção de pedras fixa em corredeiras com um complemento de taquara na extremidade - as informações que obtive em campo é que cada armadilha possui um proprietário e em torno dele se agrega o seu grupo de parentesco. Recentemente[6] localizamos dois pari no município de Londrina, em terras que foram expropriadas em 1949. Cada uma dessas armadilhas tinha um índio como seu proprietário e esses pari estiveram em atividade até 1966. Um desses índios arrendava o seu pari para um branco. Essas informações apontam para um tipo específico de propriedade e de territorialidade kaingáng a ser ainda melhor estudado.
O modo de vida no vãsy favoreceu o desenvolvimento de um conhecimento profundo do ambiente em que viviam e a produção de formas de comunicação entre os grupos dispersos na floresta. Os Kaingáng inventaram uma flauta de taquara com três furos para se comunicarem com outros grupos. Pelos sons da flauta “conversavam” à distância. Cada homem tinha sua flauta e  a sua “música” era reconhecida pelos outros companheiros. Usavam também  outra flauta composta por uma peça de cerâmica em forma de funil com um tubo de taquara  encaixada.  Pan Tanh, filho de mulher kaingáng que foi intérprete da expedição que “pacificou” o último grupo arredio da região do Tibagi em 1930, descreveu esta flauta que os Coroados bravos[7] usavam.
No tempo antigo os Kaingáng dormiam no chão, todos com os pés em volta do fogo. Cozinhavam também no chão, “colocavam estacas numa forquilha onde prendiam os caldeirões. Faziam comidas à base de milho: men-hú, emi, piché. As carnes dos animais de grande porte enterravam num buraco forrado com pedras e aquecido com brasas. Os peixes e animais menores assavam sobre jiraus de troncos.
A cerâmica e a cestaria dos Kaingáng eram atividades femininas as quais fabricavam de todos os tamanhos e para diversas finalidades. A tecelagem também era outra arte feminina. Os tecidos eram feitos de fibras de urtiga brava e pintadas com tintas naturais.
O vãsy segundo disseram, é um tempo bem antigo, mais antigo do que a infância dos que estão vivos. Os Kaingáng centenários lembram-se que quando crianças muitas mudanças já tinham ocorrido porque já eram administrados pelos brancos. Outros, entretanto, apesar de saberem da existência dos brancos, tinham contatos muito esporádicos e viveram segundo costumes do vãsy.  Esse tempo, dos “índios bravos”,  foi sendo destruído pouco a pouco, junto com as florestas que desapareciam rapidamente e com elas, os seus recursos naturais.

A construção do tempo atual e suas características

A chegada dos brancos, isto é, dos fóg, é representada como o início do processo de ruptura do tempo antigo. O tempo atual, portanto, o uri, vem sendo construído há muito tempo.  Pode-se dizer que os Kaingáng do Tibagi vêm produzindo o novo tempo há pelo menos 150 anos, quando os primeiros aldeamentos e colônias militares foram instalados.
 As causas da ruptura do tempo e espaço dos antigos, responsável pelo esgarçamento do tecido social que o caracterizava, aparecem explicitamente representadas na chegada dos brancos. Foram eles que provocaram o novo tempo, tempo no qual se encontram mergulhados hoje.
O uri, entretanto, não se confunde com o tempo do branco, embora seja um dos elementos constituintes dele. No espaço de negociação, produzido pelas interações interétnicas, os Kaingáng construíram esse novo tempo. É, portanto, um espaço relacional.
Pode-se dizer que, apesar da resistência de vários grupos ao contato, os indígenas foram, paulatinamente, tornando-se dependentes em relação aos objetos dos brancos e passaram a produzir excedentes para a troca. O depoimento de frei Cemitile sobre o cacique Aropquimbe, primeiro cacique da região do Tibagi a aceitar o aldeamento,  revela a resistência cultural do velho paí ao mesmo tempo que a dependência material ia se cristalizando. Cemitile escreveu o seguinte:

Não me foi possível fazê-lo compenetrar-se de seus tristes erros, nem convencê-lo de que a polygamia é um pecado. Devia contentar-se com uma só mulher em lugar de quatro em sua companhia. Muito menos persuadi-lo que, morando comnosco, devia aprender a religião, para que tanto elle como a sua gente se tornassem, com o tempo, verdadeiros christãos e bom cidadãos.
O velho polygamo em lugar de mostrar desejos ser educado, respondeu-me que não podia deixar de ter as quatro mulheres, porque era “Tremani”(valente).
Se estava morando comnosco, continuou, não era por encontrar a felicidade, pois mais feliz se achava nas matas virgens, onde a caça, o peixe e a fructa eram mais abundantes, e nunca lhe faltara mantimento sufficiente para o próprio sustento e o da numerosa família.
O verdadeiro motivo que justificava sua permanência entre nós era porque não podia passar mais sem as nossas ferramentas; que já era tarde para aceitar uma nova religião, sendo já velho, tanto que nunca poderá aprender a fazer o signal da cruz. Emfim, despediu-se com uma risada e deu-me as costas, dizendo-me sarcástico adeus (Apud Taunay,1931:99).

Fica claro pela exposição acima que a dependência dos índios em relação  aos objetos alienígenas é que os movem a viverem perto dos brancos e a aceitarem o aldeamento. Colhi depoimentos em que os índios falam sobre o encantamento em relação ao isqueiro e fósforos, sobre a necessidade quase ávida de adquirir tecidos, tesouras e outros objetos. Para tanto, organizavam grupos de pessoas, jovens e velhos, para irem buscar tais produtos, quase sempre viajando durante vários dias até as vilas. Levavam algum jovem que tivesse aprendido a fala do “português” e os outros para ajudarem a levar os produtos  para a troca e trazerem as “compras”. São depoimentos que revelam claramente que os próprios índios procuravam o mundo dos brancos e para isso produziram formas próprias de organização, isto é, segundo suas próprias orientações culturais. O depoimento abaixo é ilustrativo:

É, pai daquele, não sabia nada da linguagem deles, dos brancos. Daí, diz que meu avô aprendeu um pouco. Daí, diz que esse ficava na frente, porque ele era mais novo e aprendeu um pouco. Ele ficou, assim, para fazer negócio para os irmãos dele, para o pai daquele índio velho, para o avô da Catarina. Tinha mais, eles eram bastante, mas tudo (eram) mais velhos. E ele, que era caçula da velha, então ele alcançou os brancos. Não falava bem, mas falava.
Aí, quando ele saía fazer negócio assim, diz que todas as coisas eram baratinhas. Daí que esse Shangri-lá (nome de lugar) não tinha. Eles iam fazer compra nesses tempos (no lugar) chamava Piraí. A cidade chamava Piraí. Daí que eles iam a pé. Que iam prá frente de Sapopema. É lá que iam fazer compra. E ele morava aqui na beira do rio. Ia com algum irmão dele. Daí, lá fazia negócio e comprava de peça de roupa. Quando ele comprava, que ele comprava de bastante para repartir com as cunhadas, com os irmãos, com cunhados, sabe, quando ele comprava lá. Nesse tempo, eles já estavam usando roupas como nós.
Eles compravam brincos, diz que compravam de caixinha. Então eles compravam tesoura, para cortar o pano e já comprava contado para aquele que ele ia dar. Comprava, quando ele comprava faca de cozinha, comprava contado para dar para a turma. Assim ele foi. Daí outros iam com ele para ajudar carregar. Logo ele vinha com o pano: o do neto, ele cortava e dava prá ele ... só ele. Os outros não sabiam nada (mulher Kaingáng, Posto Barão de Antonina, inverno de 1990).


Como se vê, os índios, há muito tempo passaram a organizar grupos de parentes que se deslocavam para núcleos distantes de brancos. Compravam produtos que eram distribuídos segundo regras de reciprocidade estabelecidos.
Pode-se afirmar que o uri começou a ser construído quando o primeiro cacique aceitou os contatos e engendrou a troca entre os dois sistemas. As novidades introduzidas pelo branco são incorporadas ao rol das necessidades fundamentais. Essa dependência acabava engendrando novos padrões de comportamento. A subsistência baseada na exploração dos recursos florestais foi se tornando cada vez  mais difícil tanto pela devastação das mesmas quanto pela imposição de uma vida nos aldeamentos baseada na produção de uma agricultura de produtos não-índios. A produção agrícola e a transformação de parte dessa matéria-prima (rapadura, aguardente, fumo de corda), serviam para abastecer, além dos índios aldeados, as expedições exploradoras e vilas da época.
Ao longo da experiência como índios aldeados, vivenciaram diferentes tipos de relações de subordinacão: escravidão, assalariamento de diferentes matizes, parceria e arrendamento fora das reservas. Ao mesmo tempo sofreram políticas indigenistas variadas que foram alterando radicalmente seu modo de vida e consequentemente surgiram novas formas de sociabilidade internas e externas. Como cada grupo aldeado sofreu compulsões locais diferenciadas, o resultado atual apresenta um mosaico de situações também variadas.  Observa-se, por exemplo, que os Kaingáng de Londrina permaneceram mais tempo isolados e mantiveram a língua kaingáng como principal veículo de comunicação e apresenta poucas famílias resultantes de casamentos interétnicos. Os Kaingáng de São Jerônimo da Serra, no entanto, constituem os primeiros núcleos de contato permanente porque lá se instalou a Inspetoria dos Índios. Alem disso o SPI transferiu para lá várias famílias Guarani do subgrupo Ñandeva e um Xetá.  Muitos jovens não falam a língua  nativa e o número de casamentos com brancos e entre os Kaingáng, Guarani e Xetá é bastante grande é sifnificativo.
Alguns Kaingáng da TI Barão de Antonina me afirmaram ser, em contraste com os seus parentes da TI Apucarana, “mais aculturados” e mesmo “mais civilizados”. Por comparação, consideram os da TI Apucarana ,“mais ‘índios” e “puros”. Por outro lado, em várias ocasiões, ouvi os Kaingáng da TI Apucarana afirmarem que são “aculturados” em oposição aos seus antepassados. A afirmação de que são “aculturados”, tem de ser compreendido em seus próprios termos, isto é, eles não estão afirmando que deixaram de ser índios. Ao longo de nossa pesquisa fomos compreendendo que se trata da elaboração de um contraste entre a vida de seus avós com a que levam atualmente, principalmente em relação a algumas características como: não vivem mais nas florestas, não vivem isolados, ao contrário, mantêm um contato intenso com os brancos e índios de outras etnias, comem comidas diferentes. Mais ainda: hoje mantêm com os brancos, laços não só de amizade, mas muitos se tornaram afins e, juntos, produziram filhos. Também aprenderam a jogar e a apreciar o futebol, os bailes profanos introduzidos pelos brancos, comemoram o Dia do Índio, o Natal e Ano Novo, casam na igreja e no civil, fazem festa de casamento, enfim, vivem de um modo muito diferente da de seus avós.
A pesquisa de Oliveira Filho sobre os Ticuna levou-o a considerar que:

(...) A situação de contato interétnico amplia o leque de escolhas, fazendo surgir contextos onde as referências tradicionais podem ser reajustadas e reinterpretadas, ou, inversamente trocadas por outras. Contudo, quaisquer que sejam as novas referências, elas procedem do nativo e continuarão a ser diferentes das definições dadas pelos brancos às situações de contato interétnico. O conhecimento que ele (o nativo) tem do outro, respondendo a um processo adaptativo e a diferenças profundas de língua e cultura, não se confunde de modo algum com o conhecimento que o outro tem de si próprio. O contato entre grupos étnicos com culturas distintas pode levar a complexificar os esquemas mentais e os padrões  de ação de cada um, abolindo as diferenças mais óbvias de contextos (presentes/ausentes) e de fins declarados, criando modalidades de adaptação mútua, interdependência e dominação, sem no entanto suprimir as diferenças nos modos de pensar, sentir e agir, tornadas agora mais sutis e mais difíceis de captar (Oliveira Filho,1988:265).


A minha pesquisa com os Kaingáng confirma o que observou Oliveira Filho entre os Ticuna. É na direção desse universo produzido pelo Kaingáng, segundo alternativas por ele definidas, de acordo com seus esquemas culturais, que deve ser pensado o tempo atual, o uri. Com as observações que pude acumular durante os sete anos de pesquisa, mostrei as especificidades de algumas formas da estrutura e da organização social kaingáng: o casamento, o futebol, o baile, os novos acampamentos temporários que as famílias fazem na cidade de Londrina quando vêm vender seu artesanato. Tentei, sobretudo, mostrar que, apesar do desaparecimento das formas de sociabilidade tradicionais, como o kiki koi, os jogos denominados caingire e pingire, e outras que persistiram (como a festa do ẽmi  mas foram deslocados do centro para a periferia do sistema social), os seus valores e significados não desapareceram totalmente. Ao contrário, a pesquisa mostrou que o sentido original migrou para as novas formas sociais, configurando um processo de ressignificação das instituições importadas. Nesse sentido, mudança e persistência são faces de um único processo: é possível perceber antigos valores nas novas formas de sociabilidade assim como formas tradicionais com novos valores e conteúdos.
Observei, por exemplo, que continua a persistir o costume “antigo” de deslocarem-se (para pescar, para vender balaios em Londrina, para os bailes, etc.) em grupos de parentesco. Pescam com anzol nos finais de semana durante o ano todo e, nesses casos, é a família nuclear que se desloca, pai, mãe e filhos. Mais do que uma atividade de subsistência, a pesca de anzol se tornou um lazer familiar. A pesca nos pari[8], entretanto, pela sua maior produtividade continua sendo não apenas uma fonte importante de obtenção de proteína como também  garante a reprodução social nos moldes tradicionais, agregando um grupo mais extenso de parentes.
Por outro lado, observando a estrutura dos acampamentos urbanos, percebi que os índios reproduzem, temporariamente, um espaço social  que mantém a mesma especificidade étnicocultural: deslocam-se em  grupos de parentesco, cada qual instala sua barraca e lá permanece por um período de dez dias. De forma semelhante como acampam nas matas e beira de rios, trazem os equipamentos básicos: panelas, roupas, cobertas , artesanato para o comércio e os animais de estimação. Dormem no chão forrado com panos, improvisam a cozinha na parte externa e também comem ao ar livre. Os acampamentos urbanos surgem dentro do presente contexto, que os obriga a sair das aldeias para garantir a sobrevivência no território modificado pelo branco. Se antes caçavam e coletavam nas florestas, hoje o fazem na cidade (emã-bang).
É importante ressaltar que em algumas épocas, os acampamentos ficam maiores porque aumenta o número de famílias vendendo artesanato de taquara e arrecadando doações. São as semanas que antecedem as datas festivas: Dia do Índio, Natal,  Semana da Pátria. É quando fazem as festas de hoje, com muita comida, futebol e baile. São, portanto, formas de integração kaingáng.
 Nos bailes que participei, observei que as mães levam todas as crianças. Os maiores aprendem a dançar ou brincam, os pequenos são colocados para dormir no fundo do salão. A organização do espaço é semelhante à do acampamento.
Quanto ao jogo de futebol, levei muito tempo para compreender tamanha satisfação por um jogo “de branco”.  Jogam todos os finais de semana e não raras vezes convidam times das redondezas ou índios de outras reservas, Kaingáng ou Guarani. Os velhos, mulheres e crianças assistem e torcem de forma estrondosa. Não tinha dúvidas sobre a importância do futebol como forma de integração social  intra e intergrupal. Mas encontrei em Borba mais elementos que explicam as raízes mais profundas do gosto pelo futebol. No final do século passado, Borba escreveu sobre tais jogos:

Costumam fazer um exercício e divertimento que chamam caingire, que parece, e realmente é, um verdadeiro combate, comquanto não resulte das offensas nessas occasiões recebidas nenhuma inimizade. Para fazer este divertimento, preparam um largo terreiro, cortam grande quantidade de cacetes curtos, que vão depozitando nas duas extremidades deste; convidam os de outros arranchamentos para se divertirem; aceito o convite, preparam também seos cacetes, e, carregados com elles, vêm se approximando cautelosamente do logar do divertimento; alli chegados, sahem-lhes os outros a combater; arremessam-se mutuamente os cacetes com grandes vozerias, simulando um verdadeiro combate, até que um dos grupos abandona o terreiro, soffrendo, por essa causa, grande vaia e apupos. As mulheres, cobertas com uma espécie de escudo feito de cascas de árvore, vão ajuntando os cacetes que são arremessados, e depositando-os  junto aos combatentes; quando algum destes cae mal ferido, ellas o retiram do terreiro e tratam. Nestas luctas sempre ha grandes ferimentos, contusões, olhos furados e dedos quebrados; mas, dahi não procede nenhuma inimizade. Os que sahem mais maltratados, em peiores circumstancias, são considerados os mais valentes (turumanin), e como taes gabados. Aconselhando, n’uma ocasião, a que abandonassem este mao divertimento, disse-me uma índia velha: -”você não quer que minha gente se divirta mais com este brinquedo, mas nós hoje não temos mais guerra com vocês para nos exercitar; sem este brinquedo nossos homens hão de tornar fracos e medrosos como mulheres, o que não convem, porque no mato ainda ha gente brava, que pode nos atacar e a vocês; se não estivermos exercitados como nos defenderemos?  E, de mais, este brinquedo que você vê, no meo tempo, era proprio só das creanças; os homens tinham outros mais serios, nos quaes sempre dava alguma morte; mas, por essa causa nunca brigámos e sempre fazíamos o enterro como amigos”.
Tambem usam este divertimento de noite e chamam-lhe pingirè porque os cacetes são accesos em uma das extremidades; dá o mesmo resultado que o caingire, apenas com o accrescimo das queimaduras. Exercitam-se desde pequenos na lucta corporal; o que derriba um, tem que supportar a prova de todos os outros que o queiram experimentar, até que, axhausto de forças, sucumba a seo turno. Todos os outros seos brinquedos e divertimentos, são sempre mais ou menos grosseiros e brutaes (Borba,1908:17-18).

Apesar do julgamento etnocêntrico de Borba ao considerar os jogos como "grosseiros e brutais", pode-se afirmar que os jogos de ontem e de hoje têm um valor altamente positivo e está relacionado à construção de adultos fortes e valentes.
O relato de Borba oferece uma descrição dos jogos tradicionais e da dinâmica histórica que já vinha ocorrendo. De outro lado, atenta para a importância dos jogos na socialização das crianças e preparação dos futuros guerreiros. Nossa interpretação é que o sentido de tais jogos e divertimentos se territorializaram no futebol. Coincidentemente, o futebol é um jogo que guarda semelhanças com o caingire  e o pingirè, com dois grupos de “combatentes” o que favoreceu, em nossa opinião, a reinterpretação do futebol segundo princípios kaingáng. Através do futebol, é possível pensar a continuidade do espírito de competição dos novos turumanin. 
Esse espírito de turumanin também pude observar nas viagens que os Kaingáng passaram a fazer para o Mato Grosso do Sul a partir do final de 1989. Uma destilaria de álcool, a DEBRASA S/A, passou a contratar índios, do próprio estado e do Paraná, para cortar cana-de-açúcar. Resumindo, poderia dizer que a remuneração pelo trabalho é muito baixa, as condições de segurança, alojamento e alimentação são péssimas e muitos índios retornaram com tuberculose e doenças venéreas de diferentes tipos. Tanto as famílias dos trabalhadores quanto eles próprios confirmaram que acabavam tendo de retornar à Usina até cinco vezes ao ano para permanência de cerca de 60 dias porque o dinheiro que traziam acabava em menos de duas semanas. Paradoxalmente, todos me confirmavam apreciar as excursões para o Mato Grosso do Sul  e suportavam as condições que lhes eram oferecidas. As mulheres me diziam que quando os maridos e/ou filhos partiam ou retornavam dessas viagens “era tudo festa” e que na ida e mais ainda, na volta, soltavam rojões para avisarem que estavam chegando. Metade do dinheiro era gasto em mantimentos e o restante em bebidas e bailes.
De um lado, as excursões para outro estado[9] parece indicar que os Kaingáng nunca perderam o gosto pelos deslocamentos, pequenos e grandes. Aliás, nesse sentido, pode-se perceber o quanto eles viajam para  finalidades mais variadas: para pedir ajuda em Londrina, visitar parentes em outras reservas, para diversas reinvindicações em Brasília e Curitiba. Essas longas viagens, para falar com autoridades nacionais, começaram nos primeiros contatos. Os documentos e relatórios revelam que em 1843 o cacique Condá visitou São Paulo e em 1880 os caciques Paulino Arakxó e Francisco Gacon estiveram em Curitiba(Mota,1992:224/248). Em 1860 o sertanista Lopes levou 32 índios para terem uma audiência com o governador, segundo Wachovics (1987:56) Além disso, mostrei em meu trabalho que muitos Kaingáng aldeados foram guerrear os arredios em outros estados.  Assim, os deslocamentos parecem ser uma constante no modo de vida dos Kaingáng, antes e depois do contato. Nesse sentido, as excursões para o Mato Grosso do Sul parecem propiciar a recriação de dois significados visíveis: a “aventura” e a mobilidade para locais distantes e perigosos.
Por outro lado, a forma como gastam o dinheiro leva-nos a recolocar a discussão sobre a desimportância da acumulação, do consumo intensivo, enfim da queima do excedente nas sociedades indígenas.   
 


Considerações finais

 O estudo da classificação do tempo histórico elaborada pelos Kaingáng revelou-se uma forma privilegiada de acessar a historicidade kaingáng e sua etnicidade conferindo maior visibilidade `a dinâmica sociocultural. A leitura que fazem do passado e o classificam, revelou aspectos que não tinham ainda sido explorados, pelo menos em relação a este grupo étnico.
O vãsy é representado pelos Kaingáng mais velhos como um mundo perfeito, enquanto o uri é imperfeito, de um lado, porque chegaram os brancos, mas também porque os jovens não seguem mais os costumes do tempo antigo e, principalmente não respeitam mais os tabus, colocando em risco a vida de todos. Todavia, os jovens que não conheceram os costumes antigos, sentem-se à vontade no espaço e tempo do uri: seguem a vida trabalhando nas roças das reservas,  assalariam-se nas fazendas circunjacentes às reservas e no Mato Grosso doSul, jogam futebol, bailam ao som do vaneirão. Caçam, pescam e coletam pouco.
O fato de representarem não apenas positivamente o passado, mas também como um tempo idealizado, tanto material quanto simbolicamente, reflete, no nosso entendimento, uma construção simbólica do passado onde os homens e os espíritos viviam em harmonia e comunicação, formando uma sociedade “especial”, segundo Van Gennep, durante o kiki koi. Nesse sentido, na memória coletiva, o passado parece ganhar uma dimensão que tende mais para o mito do que para a história. Este caso nos faz lembrar o clássico trabalho de Antônio Cândido - Os Parceiros do Rio Bonito - onde o autor identifica o fenômeno que chamou de saudosismo transfigurador, ou seja, uma verdadeira utopia retrospectiva dos parceiros, cuja manifestação consiste em comparar as atuais condições de vida com as antigas e as modernas relações humanas com as do passado (Antônio Cândido,1964:155).
 Vãsy e uri, no entanto, não podem ser pensados como tempos separados e separáveis. Mesmo quando os Kaingáng os representam como tempos distintos, o fazem como recurso do pensamento, quando querem expressar a sua experiência histórica e cultural. Halbwachs nos alerta para o seguinte fato:

O tempo antigo pode subsistir ao lado do tempo novo, e mesmo nele, para aqueles de seus membros, para quem uma tal transformação tenha abalado menos, como se o antigo grupo recusasse a se deixar absorver inteiramente pelo novo grupo que nasceu de sua substância. Se a memória atinge então regiões do passado inegavelmente distantes, conforme as partes do corpo social que se considera, não é porque uns têm mais lembranças do que os outros: mas as duas partes do grupo organizam seu pensamento em torno de centros de interesses que não são mais completamente os mesmos (Halbwachs,1990:23-24).


É exatamente esse o quadro que se observa entre os índios pesquisados. Os velhos vivem o presente tendo os olhos voltados para o passado, preocupam-se com o futuro tendo como referência os valores do vãsy, sentindo que os mesmos se desvanecem e o presente se apresenta ora como irracional, ora como tendo outra racionalidade. Por outro lado, os jovens vivem o presente, ouvindo os ecos do passado mas voltados para novos centros de interesse. Se hoje lutam para recuperar a língua kaingáng (TIs Barão de Antonina e São Jerônimo) ou para preservá-la (TI Apucarana), é porque estão preocupados em garantir suas terras, serem reconhecidos como pertencentes a um povo pré-colombiano. Mas, como disse Halbwachs, o tempo antigo e o novo subsiste um ao lado do outro, e também, o antigo é constituinte do novo.
Para finalizarmos, posso dizer que procurei demonstrar que a sociedade kaingáng, dentro da dinâmica sociocultural na sua história recente que já completa 150 anos de contato, não produziu a homogeneização esperada pelo Estado nacional. Explorando cada conjuntura ou mesmo produzindo conjunturas, a formação e transformação de identidades coletivas e individuais são negociadas em muitos espaços, mas com a manutenção de um paradigma próprio (Marcus,1991). A historicidade kaingáng se inscreve na história paranaense segundo um padrão anteriormente estabelecido, que foi sendo transformado ao longo do tempo, e de acordo com estratégias que pudessem viabilizar a sua reprodução social no novo contexto histórico. Procuramos revelar os Kaingáng enquanto sujeitos da história que, nesse processo, tiveram de reelaborar sua concepção de sociedade e mundo. Essa reelaboração se deu a partir de suas estruturas, tanto prescritivas quanto performativas (Sahlins,1990).


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[1] Texto apresentado na XXa  Reunião da ABA-Associação Brasileira de Antropologia, em Salvador-BA, no GT Estudos Interdisciplinares dos Jê do Sul,  de 14 a 18 de abril de 1996.
[2] Trata-se de uma versão resumida da quarta parte de minha tese de doutorado em Antropologia Social que defendi em outubro de 95 na FFLCH/USP sob orientação da Profa   Dra  Margarida Maria Moura.
[3] Lê-se wãxi.
[4] Trata-se do único grupo kaingáng que ainda realiza o kiki koi.
[5] Esta exposição coloca em questão a classificação dos Kaingáng como povo nômade.
[6] Participaram da expedição, além de mim, Lúcio Tadeu Mota e Francisco Silva Noelli da UEM, um aluno do curso de ciências sociais da UEL e um informante da comunidade. A viagem ocorreu no dia 14/02/96.
[7] É assim que são nominados os Kaingáng que viveram o tempo vãsy até 1930 nas matas da região. É importante salientar que para os Kaingáng ser “coroado”, “bravo” e “do mato” têm conotação altamente positiva, constituintes do tempo vãsy.
[8] Essa técnica possibilita o aprisionamento de grande quantidade de peixes.
[9] Os índios disseram que a distância de São Jerônimo da Serra até a Usina DEBRASA é de 400 km.

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